"O personagem vive a vida, que devia ser a nossa, a vida que recusamos. Outra verdade, que julgo definitiva, é a seguinte: a alegria não pertence ao teatro. Pode-se medir a força de uma peça e a sua pureza teatral pela capacidade de criar desesperos. O teatro ou é desesperado ou não é teatro".
Nelson Rodrigues

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

A tinta

Existem momentos em que o silêncio é mais eficaz que uma enxurrada de palavras. Fico aqui tentando dizer, dizer, e quanto mais tento, mais me angustio, porque mais distante fico daquela palavra perfeita, daquilo que vai definir, colocar um ponto de basta na frase, e que, a partir dali, tudo vai mudar. Estou em busca dessa palavra que vá romper a repetição, que vá operar uma outra coisa. Em busca de sair do poço do desânimo, do escândalo - daquilo que, uma vez feito, parece manchar tudo, como a caneta que estoura no meio da carta, e esparrama aquela tinta toda sobre o que vinha sendo escrito. É assim que me sinto quando, ao escrever minha história escolhendo as minhas palavras, no meu estilo de texto, de repente, a porra da caneta estoura e borra tudo, e fico tentando secar aquela tintalhada toda, e mancha, mancha bastante, e alguma coisa ali se perde.

Se perdemos o texto original, é preciso retomar dali, é preciso incluir a mancha. Mas a mancha deixa aquele papel todo feio, e é preciso decidir por deixá-la ali, ou jogar fora aquele papel pra reescrever a história, ou simplesmente ignorar a história que teve o acidente da mancha, e escrever uma outra. A história que vinha sendo escrita quando do acidente, bem, essa parece levar a mancha, ou a sombra da mancha, mesmo quando escolhemos outro papel. É impossível reescrever a frase sem se lembrar que foi naquele momento, naquele pingo do i, que a bendita caneta resolveu estourar. Dá um medoooo. Mas ao mesmo tempo, é impossível ignorar a beleza daquela história que vinha sendo escrita, a história que agora vai ter que incluir a mancha, e que era tão perfeita até a caneta sujar tudo.

E parece que quanto maior a ânsia em secar o borrão, em colocar outra coisa no lugar, mais esquisito fica. Queria calar diante da mancha, queria poder olhá-la de frente, essa feiura toda e poder aceitá-la como parte da história bonita, que não perdeu sua beleza, que ainda começa naquele empório, nos olhares que congelaram o movimento seguinte, no beijo inevitável, no riso incontrolável de quem tinha encontrado uma felicidade inimaginável e transbordante num primeiro encontro. Ou melhor, que começa antes que soubéssemos que ela já estava sendo escrita, no homem desconhecido que admiraria (quem sabe um dia?) meu vestido colorido, no enigma e na beleza que aquilo evoca em mim, na beleza tímida de quem estava atrás da porta quando toquei a campainha, e no sorriso que fez o mundo inteiro desaparecer e congelar naquela porta se abrindo e no encontro (ao mesmo tempo inesperado e esperado), nas palavras atrapalhadas, na mão que estende o papel, na minha cabeça baixa e coração palpitante sendo interrompida na suposta leitura quando do pedido do telefone, na felicidade da mariola....

Sim, dá vontade de continuar escrevendo essa história.

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