"O personagem vive a vida, que devia ser a nossa, a vida que recusamos. Outra verdade, que julgo definitiva, é a seguinte: a alegria não pertence ao teatro. Pode-se medir a força de uma peça e a sua pureza teatral pela capacidade de criar desesperos. O teatro ou é desesperado ou não é teatro".
Nelson Rodrigues

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Panos

- Minha filha, tenho que comprar-te roupas maiores!

- Mãe, todas tuas roupas são pequenas demais para mim... Minha carne se insinua por entre os panos, e não é por desobediência... já não consigo cobrir a mim mesma.

Se soubesses quanto frio sinto às vezes.... Ai mãe, o mundo não é teu colo. Já não durmo mais, e tuas mãos não seguram mais meus pés! Agora, mãe, só tenho minhas próprias roupas a vestir...

Mas olhe, vê se não são familiares esses panos... São teus panos mamãe! Me deste com todo amor, e sonhei um mundo maior do que eles poderiam cobrir. Não chores, não te culpo por não ter me dado mais. Nenhuma mãe cobre seu filho por inteiro. Me deste mais, muito mais do que imaginas... Mas tua herança transbordou esses vestidos.

Pensas que sofro, só porque me aparecem as carnes... Sinto que minha nudez parece estranha a ti. Os panos são conhecidos, mas a carne mãe, essa é só minha. Tens razão ao pedir que me cubra - é verdade que sinto a dor e o frio de ter parte do corpo à mostra. Mas mesmo assim sou feliz, muito mais do que possas imaginar!

Não te agridas com a minha nudez! A semelhança das vestes pode ser fascinante, mas também a diferença radical do corpo é de grande beleza!!! O amor com que me presenteaste, está em mim, como uma marca irremovível, embora talvez não reconheças como teu. Também esse corpo, que agora caminha por aí, aparecendo nas brechas dos vestidos, foi gerado e cuidado por ti. Corpo que aparece para o mundo, mas não é indefeso; corpo que é frágil e ao mesmo tempo firme, muito mais do que possa te parecer por detrás desses panos.

- Por favor mãe, não me compre roupas maiores.

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