"O personagem vive a vida, que devia ser a nossa, a vida que recusamos. Outra verdade, que julgo definitiva, é a seguinte: a alegria não pertence ao teatro. Pode-se medir a força de uma peça e a sua pureza teatral pela capacidade de criar desesperos. O teatro ou é desesperado ou não é teatro".
Nelson Rodrigues

quarta-feira, 31 de outubro de 2007

Freud e a velhinha do metrô

Acordo atrasada, como de costume. 7:15 toca o despertador, rapidamente calculo o tempo absolutamente necessário para estar às 9 horas no Cosme Velho (eliminando, claro, a necessidade de um banho, de pentear o cabelo, coisas que poderia fazer na volta e no caminho, respectivamente). Depois de girar algumas vezes pela cama, na tentativa de voltar a dormir, mas não voltar a dormir tanto assim, resolvo finalmente me levantar, colocar a primeira roupa que vejo pela frente e tomar um café com pão de pé, perto da porta.

Antes disso, pego a velha edição espanhola das obras completas de Freud e coloco debaixo do braço (mas antes de antes disso penso se seria melhor colocá-la dentro da bolsa ou carregá-la daquele jeito mesmo, me decidindo pela última opção, pelo simples fato de achar que o peso esgarçaria minha bolsa).

No metrô senta-se ao meu lado uma velha senhora, e seu olhar denuncia a intenção de puxar papo com a primeira pessoa que visse pela frente. Como de costume, essa pessoa era eu.

Folheio as páginas do velho Freud, no intuito de me distrair um pouco com aquelas letrinhas pululantes. Então:

"Que livro é esse de letras tão pequeninhas que você está lendo?"
"É Freud".
"Nossa, tão novinha e lendo Freud... te interessa?"
"É, sou psicóloga". (Nessa hora penso como esse é o tipo de comentário irritante que se poderia fazer acerca de uma pessoa que lê Freud 'nessa idade')
"Você me pareceu nova".
"Na verdade sou recém-formada".

A partir daí, a senhora de sorriso simpático, olhar amável, e necessidade de falar, conta sua vida - ela era tradutora em congressos e dominadora das línguas anglo-germânicas -a do seu neto que escolheu fazer economia pra ganhar dinheiro, a da outra neta que fez direito por causa dos concursos, e fala da importância de se escolher algo com que se goste de trabalhar.

"Você gosta de psicologia?"
"Sim, bastante".
"Quando te vi com esse livro pensei que era coisa de intelectual".

Os outros passageiros observam atentamente nossa conversa, olhares vêm e vão, e quando se cruzam, dá-se o desvio próprio do constrangimento de se sentir descoberto na intenção de capturar os fragmentos da conversa alheia.

A velhinha salta em Botafogo, me desejando boa sorte na vida profissional.

Penso que sim, terei boa sorte, como tive até agora... mas que no momento de sua partida, deixo de ser eu mesma para me transformar numa incógnita intelectual do metrô.

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

A outra cena

Segunda-feira, acordo meio-dia, tomo um café-com-leite e nada mais, para não perder a vontade de almoçar numa hora decente. A vida pós-formatura mexe com a rotina, com os ritmos biológicos, e não quero estragá-los por conta de um pão com manteiga - já basta ter arruinado o meu sono. Segunda de sol, um ótimo dia para se ir à praia. Vou sozinha, mas carrego um livro debaixo do braço para fazer companhia às minhas idéias. Me coloco num lugar algo perto do mar, algo distante das outras pessoas que vão à praia segunda-feira. Mas não tão distante assim: me situo no lugar ideal entre o anonimato e a curiosidade (sim, eu gosto de ouvir o que os outros conversam na praia). Resolvo pedir uma cerveja, coisa que quase nunca faço às segundas-feiras, e que raras vezes faço na praia. Penso no prazer que sinto em inserir pequenas cenas na vida, prazer de não deixá-la correr no automático, poder ficar debaixo do sol pensando coisas cheias de calor.

Por detrás da cena que dirijo - na diagonal esquerda inferior encontra-se um grupo de homens falando sobre a mulher que um deles comeu no fim-de-semana e que ficou "de ladinho" e deu pra ver que ela se depilava a laser, o que sai, mais ou menos, uns 180 reais, mas não deixa nenhum pentelho fora do lugar - a Outra cena.

Na Outra cena me equilibro entre aquilo que dirijo e o que me dirije. Sonho, devaneio, imaginação e também realidade, sol quente e concreto. O banal e o essencial, o absurdo e o sentido, tudo ali, posto, dado, se impõe aos meus olhos enquanto leio "a Outra cena".

Anoto num pedaço de papel, penso que é o nome, que ele diz o que quero dizer e ponto. Está decidido.