"O personagem vive a vida, que devia ser a nossa, a vida que recusamos. Outra verdade, que julgo definitiva, é a seguinte: a alegria não pertence ao teatro. Pode-se medir a força de uma peça e a sua pureza teatral pela capacidade de criar desesperos. O teatro ou é desesperado ou não é teatro".
Nelson Rodrigues

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Perfil

Ela não se conhecia por inteiro. No entanto, sabia que seu melhor ângulo - aquele no qual ela se sentia mais a vontade e feliz consigo mesma - era o de quem a via pelo perfil esquerdo. Rosto do lado esquerdo, um pouco inclinado para baixo. Olhar perdido no horizonte, boca fechada com suavidade, quase esboçando um sorriso. Era assim que gostava de si. Se os cabelos estivessem presos em coque, poder-se-ia dizer que era uma estátua clássica. De cabelos soltos era Monalisa. Jogava para o mundo todo o enigma que guardava em si : Decifra-me ou te devoro.

O que guardava de sua imagem era uma sucessão de fotografias, poses, momentos capturados, perspectivas congeladas e imóveis - não se conhecia em movimento. Sim, ela já se vira no espelho e até em fitas de vídeo, mas ali não se reconhecera. Ela não sabia o que sua mobilidade provocava nos outros. Tinha um pouco de vergonha de seus gestos estabanados, de suas gargalhadas espontâneas e despropositadas, ela se preferia assim, uma imagem capturada num instante. A essa imagem dava o nome de eu.

Se por acaso alguma pessoa desprevinida viesse de sua direita, tratava de se esconder colocando delicadamente a mão no rosto ou jogando os cabelos de tal forma que cobrissem suas bochechas até quase o nariz - abria apenas uma breve concessão para os lábios. Se sentia completamente desnudada do lado direito, precisava se cobrir para que não a vissem em carne pura. Não sabia exatamente porque se sentia assim.

Quando criança não se preocupava tanto com isso, aliás, nem sabia que os outros a viam. Nessa época imaginava-se transparente, pois era através dessa transparência que ela entrara em contato consigo, era assim que se conhecia. Conforme foi crescendo, começou a perceber que não era tão abstrata quanto pensava, viu que os outros a observavam em uma materialidade que até então lhe escapara. E foi aí que percebeu que direita e esquerda eram diferentes.

Então, já não pôde transitar de um lado para o outro sem se incomodar com isso. Convivia com o que era seu e com o que era estranho a si. Entendia que não se tratava de dois lados da mesma moeda. Direita e esquerda nunca mais se encontraram.

Um comentário:

Carlos Pittella Leite disse...

Pois é: "só falta re-unir a Zona Norte e a Zona Sul", Ying & Yang, Ha & Tha...